Branco
Hoje os aeroportos provavelmente ficaram fechados. Vejo tudo branco e sinto frio. Eu imagino o frio e o sinto. O frio é branco. O gelo, os hospitais, os cadáveres quando o sangue pára de circular... O papel branco é frio. O calor está nas palavras escritas. Ou não. As palavras também podem ser brancas. Um adeus, um fim, um eu-não-te-amo-mais...
Lembro dos prédios do outo lado da rua mas não posso vê-los. Tudo é branco como se alguém, com uma borracha imensa, tivesse apagado o mundo à minha volta. Me sinto ilhado no nada. Flutuando numa imensidão branca. Flutuando no frio.
Manhã de neblina densa. Nunca tinha visto uma neblina tão espessa. Por uns momentos me agradou a idéia de que alguém tivesse apagado o mundo e sobrara uma tela em branco. Mas eu estava ali, então o resto mundo também estava. Todo o resto. Mesmo que eu não pudesse vê-lo. Uma presença ausente. Uma presença da qual se sabe mas não se sente. E não se vê. E há muitas coisas que eu não vejo e sei que elas realmente existem. Elas existem independente de mim, da minha vontade ou do meu poder de enxergá-las. Como se isso lhes fosse indiferente.
As geleiras do Ártico se transformaram em neblina e baixaram sobre a cidade. Deixaram um vazio em seu lugar de origem e vieram ocupar o lugar à minha volta. O lugar onde você não está. O espaço entre você eu.
Você também está em algum lugar, envolto pela neblina. Eu não posso vê-lo mas posso senti-lo. Talvez porque ainda esteja em mim como uma lembrança quente, recente demais para se tornar fria. Um cadáver recente.
Provavelmente os automóveis estejam trafegando com os faróis acesos pelas estradas. Tentando iluminar o desconhecido, tentando evitar uma situação de perigo. Eu não tive esse cuidado. Nunca tive. O perigo sempre me surpreende. E eu nunca estou preparado. Me resigno à fatalidade.
Visto meu casaco e mergulho na neblina. Com as mãos nos bolsos. Não sou o único que se entrega. Há outros como eu surgindo e sumindo na neblina pelas ruas da cidade. Ruas que vão se materializando do branco e sumindo no branco, à medida em que caminho. E eu tenho a impressão de que não chegarei a lugar algum, como alguém que caminha em uma esteira eletrõnica. Buscando o cansaço. O calor do cansaço. O conforto do cansaço.
Caminho muitas quadras e não sei para onde vou. Não sei o que busco. As pessoas que surgem do branco me dizem com os olhos que não há nada lá, de onde vieram. Eu também lhes digo que não há nada para onde vão. Eu sei, eu vim de lá. Mas elas vão assim mesmo. E eu também. Como rios que não podem questionar seu curso. Que não podem questionar, parar ou mudar de rumo. Por um segundo eu lhe entendo. Por um segundo tudo fica bem. Mas então me lembro do frio da sua ausência. Lembro do frio e sinto frio.
Alguém na rua diz que a neblina se dissipará após a hora do almoço. Talvez haja sol. Talvez tudo fique muito claro e quente. Me desespero. Eu não posso deixar de sentir frio. O frio em mim é um sinal de você. Seu toque em mim. Sua presença em mim. Sua morte e sua eternidade em mim. Volto para casa com pressa. Desfaço todos os quarteirões percorridos. Ultrapasso muitas pessoas que surgiram da neblina em direção contrária a que eu ia. Gostaria de avisá-las sobre o fim da neblina, do branco, mas eu não tinha tempo.
Entrei no apartamento e liguei o ar condicionado. Cobri todos os móveis com lençóis brancos. Todos. Inclusive o sofá branco. Lembra? Era tão branco quando compramos... Tão branco que você precisou maculá-lo logo de cara escrevendo "Love never dies" na lateral. Lembra? E depois veio o vinho derramado... as patas do cachorro... aquela brasa que caiu do cigarro... Ele nunca conseguiu ser totalmente branco... Agora é. Tudo é branco. E frio. E você.
Arranquei o tapetes. Deixei só o branco do mármore. Frio. E tão bonito. A sala fica supreendente grande sem os tapetes. E fria. Tanto esforço me fez transpirar, apesar do frio. Como que com febre, suava e tremia de frio. Tirei minhas roupas. Minha pele branca. Lembra?... Deitei no mármore. Meu rosto no mármore. Meu peito no mármore. Minha barriga, meu sexo, minhas coxas, as pontas dos dedos dos pés. Minha pele branca no branco do mármore. O mármore frio da sua pele, da sua ausência... tão presente. Minhas mãos deslizando pelo mármore. Eu acariciava o mármore e sentia você. O seu frio.
Fechei meus olhos e a minha escuridão era branca. Lembranças surgiam do branco e desapareciam nele. Sons, palavras ecoavam na imensidão branca. Tudo estava ali. Tudo de nós. Não existe lembrança minha que não comece em você. Algumas coisas eu não podia ver mas sei que estavam ali, como prédios que se erguem do outro lado da rua ocultados pela neblina.
Acomodei-me no frio, no mármore. Estava colado ao mármore cada vez mais frio. E eu me tornando mármore. Caca vez mais branco, mais frio. Cada vez mais você. E então você saiu da escuridão branca com aquele seu sorriso branco e seu olhar branco e dizendo: Love never dies.
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